quinta-feira, 24 de setembro de 2020

quarta-feira, 23 de setembro de 2020

Independência ou Morte!

 Independência ou Morte, por Samanta M. Sampaio


Esta história só poderia ter acontecido mesmo durante essa pandemia. Estava eu ajudando meu filho com as atividades da escola, quando abrimos a aula gravada sobre o dia da independência do Brasil. Enquanto o vídeo rolava, meu assombro só crescia. A professora - muito dedicada e esforçada, admito com prazer - pôs-se a desfiar todos os mitos sobre os eventos referentes à data que eu, provavelmente mais ou menos da mesma idade do meu pequeno, ouvi na escola.
Desta feita, ficamos sabendo que D. Pedro era muito querido pelo povo brasileiro, e que por isso não seguiu com sua família quando ela decidiu abandonar o Brasil e voltar para Portugal. Também por isso, por esse afeto mútuo, ele decidiu dizer que ficaria com o povo tão amado, dando origem ao Dia do Fico. E que então, para defender os brasileiros - não se disse exatamente de que - ele subiu em seu cavalo, puxou a espada e proclamou “independência ou morte!!!”. Com direito a muitos pontos de exclamação, obviamente!
Quando eu ouvia estes mitos, há tantos anos atrás, o Brasil estava sob uma ditadura, o que forçosamente implica em dourar o passado do país e ocultar os defeitos daqueles que o formaram. É normal, faz-se isso desde que o mundo é mundo, ditadores são ditadores, releva-se. Mas fiquei a matutar alguns pontos que não consigo solucionar. Vejamos:
Ainda precisamos mesmo dourar a pílula para as crianças? Esta geração que hoje tem seus cinco ou seis anos já nasceu com o dedo indicador em riste - se não para nos corrigir, para tocar as telas onipresentes em suas vidas? Será que não os estamos subestimando?
A querida professora, que provavelmente teve uma vida simples, sem luxos, e uma formação deficitária - não podemos negar a baixa qualidade dos cursos de pedagogia no país, eu pessoalmente tenho experiência com eles - realmente acredita nas histórias que passou para as crianças ou foi orientada a ensiná-los assim?
Tenha sido iniciativa da professora ou da escola, por que contar mentiras em sala de aula? Eu acredito piamente na teoria de que às crianças basta responder suas perguntas com sinceridade e simplicidade e elas se darão por satisfeitas - sem necessidade de mentiras ou tratados sobre história e geopolítica, no caso.
Caso a professora ainda acredite nestas versões romanceadas da história do Brasil, o que lhe faltou? Pensamento crítico? Acesso aos fatos históricos? Tempo para pensar ou ler livros sobre o assunto? Interesse, puro e simples?
E estes últimos questionamentos me levaram a outros: o que mais, além de conteúdos escolares, ouvimos desde pequenos e nos esquecemos de questionar ou pôr à prova? Provavelmente, como parte do crescimento, todos nós, em algum momento, questionamos coisas básicas que eram dadas como verdades irrefutáveis na infância - a autoridade dos pais, os valores que eles tentaram nos passar, religião, política, visão de mundo, filosofias... mas não podemos esquecer que tudo faz parte de quem somos e de como nos posicionamos no mundo. Continuar acreditando que o mundo é como um romance histórico certamente vai nos decepcionar cedo ou tarde. Mas o mais importante é nunca deixar de questionar - tudo, toda informação que nos chega, todos os nossos pensamentos, nem que por ao menos um segundo. Esse exercício de pensar constantemente e analisar se continuamos no caminho que acreditamos ser o certo é o que nos faz humanos no melhor sentido da palavra.
É isso: pensar. Pensar e questionar é preciso. Isso sim significa independência - ou morte.


Samanta M. Sampaio é apaixonada por uma quantidade inacreditável de assuntos, que sempre a levam à sua paixão primordial: livros. Para entrar em contato, envie um e-mail para <pensarnaoeproibidoainda@gmail.com>.

terça-feira, 22 de setembro de 2020

ENTRE OS BURACOS DA MEMÓRIA

ENTRE OS BURACOS DA MEMÓRIA



 

A extraordinária obra acima é de autoria de um artista suíço chamado Dominique Appia, que viveu toda sua vida em Genebra.

Não se trata de um nome muito conhecido, pois sua obra não é muito extensa, não havendo praticamente nenhum material impresso sobre ele ou sobre sua vida. O pouco que se sabe é que ele foi um arquiteto durante grande parte de sua vida e, ao ter uma crise de meia idade, decidiu pintar, que era uma atividade que fazia antes de ser tornar arquiteto.

Seus quadros são todos no estilo surrealista, muitas vezes sendo confundidos com obras de Salvador Dalí. A temática principal de seus quadros é o inconsciente, a psicologia e o mundo dos sonhos.

Quando vi a obra acima fiquei encantado e comprei um poster de grandes proporções, o qual está em minha sala há muitos anos. Toda vez que olho para ele vejo algo novo e que não havia percebido ou entendido anteriormente. Desta forma, não farei uma análise do quadro, deixando que cada um o “leia” e entenda de acordo com sua própria interpretação pessoal.

No entanto, uma coisa é evidente: Dominique Appia foi um artista genial que merecia ter tido mais reconhecimento do que teve. Suas obras são magníficas e artisticamente riquíssimas. Sem dúvida alguma, um grande mestre da pintura.

ALDOUS HUXLEY

Depois do silêncio, o que mais se aproxima de explicar o inexprimível é a música.

- Aldous Huxley





segunda-feira, 21 de setembro de 2020

PELADA NA VÁRZEA

 PELADA NA VÁRZEA

  




Boa noite caros telespectadores! Bem-vindos ao duelo desta noite: o brasileiro versus a incompetência do governo! Este promete ser um jogo duríssimo!

O brasileiro entra otimista em campo. Tem confiança de conseguirá embarcar ainda hoje em seu voo para a extremidade oposta do país.  O governo está disposto a fazer de tudo para impedi-lo, e é extremamente competente nisso. Todos os adversários do governo reconhecem sua infinita capacidade de sorver todos os recursos de seus oponentes, deixando-os sem energia para enfrentá-lo.

Começa o jogo. O brasileiro pega a bola, o governo vem e entra duríssimo, na canela e sai correndo e, como não tem nenhum escrúpulo mesmo, considera a jogada normal e prossegue.

A situação começa a ficar difícil para o brasileiro, pois o governo demonstra que as regras do jogo só se aplicam ao brasileiro, não para si, pois ele tem foro especial e privilegiado em Brasília.

Como sempre, correndo atrás do prejuízo que lhe é imposto pelo governo, o brasileiro corre atrás da bola e consegue tomá-la do governo, já que ele é extremamente lento e burocrático ao correr.

Feliz da vida, o brasileiro parte velozmente em direção ao saguão principal do aeroporto. A torcida está toda a favor do brasileiro, mas não o demonstra, afinal, o povo daqui só lembra que é brasileiro durante a copa do mundo, não em um jogo sem qualquer glamour como este.

Mesmo sem o apoio da torcida, silenciosa devido à apatia e acomodação que lhe são peculiares, o brasileiro consegue passar driblar os motoristas de táxis que tentam bloquear sua passagem, oferecendo preço fechado na bandeirada deles por apenas R$200,00.

O brasileiro entra na área do adversário, porém, fica desorientado, pois não consegue tocar sua bagagem até o check in. Há uma multidão de pessoas por lá, todas revoltadas. Reclamam, mas ninguém faz algo de concreto. Um esporte nacional realmente popular: ficar horas esperando em filas, reclamando, não fazer nada à respeito disso e, depois de atendido, ir embora e se esquecer de tudo.

Depois de muitos dribles e de mostrar toda sua ginga, o brasileiro consegue fazer o check in, não antes de ser confundido novamente pelas informações contraditórias dos funcionários da companhia aérea e ser tratado com a mesma cordialidade dos garçons franceses.

Porém, o governo, apesar de sua morosidade e incompetência, possui aliados por toda parte, que tentam de toda forma dificultar a vida do brasileiro e impedir sua viagem.

Portões são abertos e fechados, informações contraditórias nos painéis, todo tipo de artifício é usado para desorientar o infeliz brasileiro.

Usando de suas últimas forças, o brasileiro dá um chapeuzinho no adversário em frente ao portão de embarque. Ufa! Consegue passar por mais um! Agora corre obstinadamente em direção ao embarque, onde uma barreira bloqueia sua visão. Mas o brasileiro realmente está decidido a embarcar neste voo.

Dá um chute em sua bagagem de mão e consegue colocá-la por cima da barreira. Agora só falta ele conseguir embarcar!!!

Cada vez mais confiante em sua habilidade de superar os obstáculos, o brasileiro faz uma finta, finge que vai e não vai e consegue driblar a barreira à sua frente. Já com o grito de gol na garganta, penetra a pequena área adversária e consegue entrar no avião. Milagre!! Seu assento não está ocupado por nenhum idiota analfabeto que não consegue ler o número de seu assento no bilhete!

Parece inacreditável, caros telespectadores, mas o brasileiro consegue sentar-se em sua poltrona e afivelar o cinto de segurança! 

Goooooooooooooooooooooool!!!!!, grita ele euforicamente.

Porém, logo em seguida, ele ouve a voz do comandante da aeronave falando num tom digno de “A Voz do Brasil”.

-Informamos aos srs. passageiros do voo Goooooooooooooooooool 123, com destino à Fimdomundópolis que não teremos como decolar. Está chovendo e faltando eletricidade na cidade. O aeroporco de Pamonhas está fechado por sua pista não estar preparada para dias chuvosos.

Pedimos a gentileza que o povo brasileiro engula mais esse sapo e volte amanhã às 4 horas da manhã para pegar uma senha para o reembarque, provavelmente lá pelo final da tarde, se a chuva tiver parado e os controladores de voo não estiverem mais em greve.

Este realmente não é um país sério. 

segunda-feira, 14 de setembro de 2020

MARILLION - CLUTCHING AT STRAWS

 

ÁLBUNS CLÁSSICOS DO ROCK – VOLUME 5

MARILLION – CLUTCHING AT STRAWS

 




FICHA TÉCNICA

ANO DE LANÇAMENTO

1987

PRODUZIDO POR

CHRIS KIMSEY

MÚSICOS PRINCIPAIS

TODAS AS CANÇÕES DE AUTORIA DE FISH, STEVE ROTHERY, PETE TREWAVAS, MARK KELLY E IAN MOSLEY

FISH – VOCAL

STEVE ROTHERY – GUITARRA

PETE TREWAVAS – BAIXO

IAN MOSLEY – BATERIA

MARK KELLY – TECLADOS

TESSA NILES – BACKING VOCALS NAS FAIXAS 3 E 11

 

LISTA DE CANÇÕES DO ÁLBUM

1

HOTEL HOBBIES

2

WARM WET CIRCLES

3

THAT TIME OF THE NIGHT

4

GOING UNDER

5

JUST FOR THE RECORD

6

WHITE RUSSIAN

7

INCOMMUNICADO

8

TORCH SONG

9

SLAINTE MHATH

10

SUGAR MICE

11

THE LAST STRAW /HAPPY ENDING

 

ORIGENS DO ÁLBUM

"Se uma pessoa tentasse tirar os trajes dos atores enquanto eles encenam uma cena no palco, mostrando ao público sua aparência real e os rostos com os qual nasceram, ela não estragaria toda a peça? E os espectadores não pensariam que ele mereceria ser expulso do teatro à tijoladas, como um bêbado inconveniente? Agora, o que mais é toda a vida dos mortais, além de uma espécie de comédia, em que os vários atores, disfarçados por vários figurinos e máscaras, caminham e cada um faz o seu papel, até que o diretor os acena para saírem do palco? Além disso, este mesmo diretor frequentemente ordena ao mesmo ator que volte à cena em uma fantasia diferente, de modo que ele que interpretou o rei vestido em escarlate agora atua como um lacaio vestido em roupas remendadas. Assim, todas as coisas são apresentadas por sombras.”

- Erasmo de Roterdã em sua obra “O Elogio da Loucura”, de 1509

 

Essa é a citação que aparece na contracapa do quarto álbum da banda inglesa/escocesa Marillion, em sua maior obra prima, intitulada “Clutching at Straws”, e que dá o tom sombrio que permeia todas as canções desse que foi o último álbum deles com o vocalista Fish.

Contra capa do álbum


O título do álbum em inglês significa aproximadamente “Agarrando Palhas” em português. Essa expressão foi criada originalmente por Thomas More em sua obra “Diálogo do Conforto Contra a Atribulação”, de 1534. O sentido da expressão é a de que um homem que está desesperado, se afogando, agarra qualquer coisa que ver pela frente, ainda que sejam pedaços de palha, com o intuito de salvar sua vida antes de morrer afogado.

Em 1985 a banda lançou seu álbum de maior sucesso comercial de toda sua carreira, intitulado “Misplaced Childhood”. O obra teve uma enorme repercussão em todo mundo, principalmente por duas de suas grandes canções: “Kayleigh” e “Lavender”.

Fizeram uma extensa tour pela América do Norte e Europa, lotando os locais onde se apresentavam. Aparentemente estavam no auge da carreira, alcançando a fama e o reconhecimento que tanto haviam almejado. No entanto, o preço que pagaram por isso foi muito alto. Tão alto que acabou gerando uma ruptura entre os membros da banda.

Da esquerda para a direita: Mark Kelly, Pete Trewavas, Ian Mosley, Steve Rothery e Fish (sentado)


Uma pressão imensa por parte da gravadora para que retornassem logo ao estúdio para gravarem um novo álbum que fosse tão bem sucedido quanto seu antecessor, as contínuas demandas por mais apresentações ao vivo, entrevistas, programas de TV e atividades promocionais incessantes fizeram que os membros da banda se sentissem exauridos. Além disso, todos esses elementos contribuíram para que surgissem vários problemas de relacionamento entre os membros do grupo, particularmente entre o vocalista Fish e os outros músicos da banda. Na época, Fish era o único que ainda era solteiro, enquanto todos os outros já eram casados e tinham suas famílias consolidadas. Para piorar a situação, pelo fato de ser o vocalista, naturalmente ele atraía mais a atenção da imprensa e dos fãs, que o viam como líder da banda, o que não era verdade. Era sempre o mais solicitado para entrevistas, fotos e toda e qualquer atividade relativa ao Marillion. Era o rosto da banda.

Todos os integrantes da banda concordam em um ponto: a causa central de seus problemas foi a agenda incessante de tours imposta à eles pelo antigo empresário do Marillion, que fez com que a banda desse todo seu sangue e suor na estrada, levando os músicos a se sentirem como se fossem animais em um circo itinerante, os deixando fisicamente e mentalmente exaustos.

Pete Trewavas declarou que provavelmente Fish sentiu a pressão mais do que todos os outros, pois era a cara da banda, com quem todo mundo queria conversar e entrevistar, sendo constantemente demandado e tendo seu tempo consumido.

A banda precisava de férias, mas a pausa que necessitavam nunca ocorreu e os relacionamentos foram se deteriorando. A gravadora os mandou de volta para o estúdio gravar um novo álbum de sucesso. Ian Mosley afirmou que as tours acabaram com eles. Quando entraram no estúdio eles tinham em sua frente uma tela em branco enquanto a gravadora os pressionava perguntando “O novo álbum já está pronto?”. Tentaram arduamente fazer um álbum de sucesso. O problema é que eles não estavam mais conseguindo se relacionar entre si.

Fish acabou mergulhando em um estilo de vida que lhe trouxe danos a sua saúde física e mental. Envolveu-se seriamente com o álcool e a cocaína. Trocava a noite pelo dia e vivia em festas que pareciam se emendar uma com a outra seguinte.

Fish


Ele queria que os seus colegas de banda participassem, mas ninguém conseguia acompanhar o seu ritmo nem seu consumo desenfreado de álcool e cocaína. Além disso, precisavam voltar para casa para suas esposas e filhos. O tecladista Mark Kelly declarou que tentou acompanhar Fish em algumas ocasiões, mas mesmo quando ele voltava para casa às 3h da madrugada Fish o fazia se sentir muito mal, como se ele fosse um estraga-prazeres que não quisesse aproveitar a vida.

Cada vez mais Fish foi se isolando do restante da banda, passando a fazer tudo sozinho e somente os encontrando no estúdio de gravação e nos palcos. Se sentia solitário, deslocado e frustrado. A fama não era aquilo que ele imaginava que fosse nem havia trazido a felicidade e realização tão esperadas por ele. Cada membro da banda lidou com a fama de uma forma diferente. Fish admitiu que seu ego fugiu do controle na época e que ele de fato se tornara um idiota.

Como uma válvula de escape, Fish decidiu começar a trabalhar nas letras daquele que seria sua última participação com o Marillion. Criou um personagem fictício (mas nem tanto) chamado Torch, de 29 anos (a mesma idade de Fish na época) o qual era um escritor bem sucedido passando uma crise existencial e que queria mudar seu estilo de vida. Estava com um bloqueio e não conseguia escrever. Para buscar inspiração usava o álcool e cocaína, vivendo uma existência solitária e sem sentido. À medida que ele vai ficando bêbado, começa a escrever sobre o que vê a sua volta e sobre seus arrependimentos. Não precisamos ser muito perspicazes para notarmos que, na realidade, Fish estava escrevendo sobre ele mesmo, apenas usando um pseudônimo, fato que foi confirmado por ele anos depois, que declarou que Torch era seu alter-ego, tentando disfarçar alguns dos excessos que ele cometia e são descritos nas letras das canções, pois se sentia culpado. Na época não teve coragem de assumir publicamente que, na realidade, Torch era ele mesmo.

Uma peculiaridade do álbum é que cada uma das canções é dedicada à uma cidade em particular, na qual a letra daquela canção foi escrita, enquanto o Marillion estava na tour do álbum anterior.

Todas as letras e canções são interligadas entre si, formando um álbum conceitual, um estilo de obra clássica dos anos 70, popularizado pelas maiores bandas de rock progressivo, das quais os integrantes do Marillion sempre foram grandes fãs e admiradores, como Genesis, Yes, Pink Floyd, Emerson, Lake and Palmer e tantos outros.

Nesse álbum extraordinário, o Marillion e Fish em particular nos levam por uma viagem pela mente e sentimentos de Torch. O brilhantismo da obra se dá pelo fato de os 5 integrantes terem conseguido fazer um trabalho absolutamente coeso, inspiradíssimo e, embora bastante triste e sombrio, repleto de uma beleza profunda. As letras são entoadas como por um ator Shakespeariano com uma alma de poeta.

O tecladista Mark Kelly é um grande mestre na criação de texturas e climas atmosféricos perfeitos para cada uma das canções. O baixista Pete Trewavas e o baterista Ian Mosley formam uma cozinha incrível, totalmente sincronizada, tocando exatamente aquilo que a canção pede. O guitarrista Steve Rothery, que é fortemente influenciado por dois dos maiores guitarristas do rock progressivo, David Gilmour (Pink Floyd) e Steve Hackett (Genesis), faz solos maravilhosos, alguns dos melhores de toda a sua carreira, enquanto o vocalista Fish abre o seu coração e alma para o ouvinte, fazendo um relato visceral e pungente sobre seus medos, ansiedades, sonhos e frustrações. Poucas vezes no rock se viu um artista se expor tanto, com tamanha sinceridade, quanto o grande vocalista (em todos os sentidos, pois a altura dele é de 1,95m!) fez em sua derradeira obra com o Marillion. Suas letras falam sobre traumas emocionais, isolamento (um tema muito atual), baixa autoestima e a busca por uma saída. Sua franqueza é brutal e os temas abordados são mais relevantes do que nunca. O álbum é cru e repleto de confissões sinceras.

O que resultou de tudo isso foi um trabalho inesquecível e muito marcante, que o próprio Fish reconhece, embora seja um álbum estranho e sombrio, é o melhor de toda sua carreira com o Marillion. Mark Kelly disse que gosta menos desse álbum do que seu antecessor “Misplaced Childhood”, embora reconheça que algumas pessoas realmente gostem dele. Steve Rothery declarou que é um álbum estranho. É muito poderoso, pois ele tem algumas de dos melhores trabalhos da banda, mas você pode ver as linhas de fratura nele. Alguns dos músicos ainda têm más lembranças do período e das dificuldades que passaram na época, que acabaram levando à saída do vocalista da banda, que disse que o álbum foi o seu obituário escrito por ele mesmo. Steve Rothery afirmou que é um álbum bem menos otimista, pois simboliza a desilusão de Fish. Ele queria ter sucesso e ele conseguiu, mas isso não trouxe a felicidade pessoal que ele esperava ter. O próprio vocalista afirmou que esse “é um álbum de um poeta bêbado”.

As letras das canções desse álbum são fantásticas. Poderiam facilmente ser incluídas em um livro de poesia, pois Fish é, sem sombra de dúvida, um dos maiores poetas e letristas de toda a história do rock. Quem puder, não deixe de conferir cada uma delas detalhadamente.

A capa do álbum é um trabalho brilhante do artista Mark Wilkinson, que complementa perfeitamente a obra musical que se encontra dentro dela. Na parte frontal podemos ver uma foto escura da banda dentro do pub Baker’s Arms, em Colchester, no fundo do salão, juntamente com colagens de vários personagens que tiveram sérios problemas com o álcool, drogas ou ambos. Muitos deles citaram que usavam tais substâncias para estimular sua criatividade ou como proteção da fama surreal que tinham. Na parte frontal temos, da esquerda para a direita, Robert Burns (poeta nacional da Escócia que morreu aos 37 anos devido ao álcool), Dylan Thomas (poeta galês que morreu aos 39 anos também vítima do álcool), Truman Capote (escritor, que morreu aos 59 anos devido à uma mistura de álcool, drogas e pílulas, provavelmente se suicidando) e Lenny Bruce (comediante e comentarista social, que morreu aos 40 anos devido a uma overdose de heroína). Na contra capa, outra foto, agora no salão de bilhar do pub, com os membros da banda jogando em meio à colagens de mais outros personagens: Da esquerda para a direita, John Lennon (assassinado aos 40 anos mas que teve sérios problemas com o álcool e drogas pesadas), James Dean (morto em um acidente de carro, provavelmente por estar embriagado e drogado) e Jack Kerouac (o famoso poeta, criado do movimento beat, que morreu de cirrose aos 47 anos).

Esse é um dos meus álbuns favoritos. Eu o descobri quando ele foi lançado, em 1987, pois já acompanhava a carreira da banda desde 1984. Fiquei fascinado desde a primeira vez que o escutei e nunca mais o deixei. Realmente é uma obra pesada, triste e um pouco deprimente. No entanto, esse álbum foi meu companheiro em alguns dos momentos mais difíceis de minha vida, no qual eu o procurei como apoio emocional. Ele sempre me mostrou que, mesmo em meio as dificuldades, tristeza e solidão, ainda há muita beleza no mundo e na vida.

Eu os convido a fazerem essa viagem comigo e a mergulharem no universo fantástico dessa banda de primeira linha que, embora seja famosa, deveria ter um maior reconhecimento e sucesso de público.

 

ANÁLISE DO ÁLBUM - FAIXA A FAIXA

 

Hotel Hobbies

O álbum começa com uma atmosfera sombria criada pelos músicos da banda até que o vocalista começa a nos contar a história de Torch. A letra descreve o hotel de baixa categoria no qual o personagem parece viver. Os rapazes da recepção estão de olho nas prostitutas no salão de entrada do hotel enquanto personagens da noite circulam pelos corredores. Torch está sentado no seu quarto, tentando escrever sua próxima obra sem conseguir superar seu bloqueio. A fumaça de seus últimos cigarros está se dissipando, assim como as horas que passam.

A cocaína não parece lhe trazer nenhuma inspiração, nem o suor do copo de whisky em suas mãos. Torch começa a escrever freneticamente, rabiscando as páginas, tentando apresentar personagens em sua nova obra, como se através deles estivesse confessando seus crimes, tudo em meio à “happy hour” eterna na qual leva sua existência. O dia raia sem que Torch tenha conseguido iniciar sua obra

Fish declarou que essa canção “É sobre estar em tour e é realmente tarde e você está aborrecido e ouve todas essas garotas perambulando pelos corredores e você tentar ver algo através do buraco da fechadura de seu quarto e entender o que está acontecendo.”

Ian Mosley


O baterista Ian Mosley e o baixista Pete Trewavas fazem um trabalho brilhante nessa canção, criando o ritmo sobre o qual toda a ação se desenrola. Steve Rothery faz alguns solos incríveis, tudo complementado pelos climas criados pelo talentoso tecladista Mark Kelly.

 

Warm Wet Circles

Amanhece e os bêbados tentam voltar para suas casas, parando no caminho para fazer propostas para as manequins solitárias nas vitrines, até que desistem e caminham em silêncio para seus lares.

Vários personagens da noite estão se preparando para regressarem para suas residências, aguardando ansiosamente a chegada da noite. Os jogadores de bilhar em suas últimas rodadas, acompanhadas da última dose com os amigos, o barman cansado, sonhando em despachar os últimos bêbados para que possa ir para sua casa, garotas flertando sob a luz tênue das cabines de telefone, todos são personagens da história que Torch tenta colocar no papel, de forma hesitante. Lembranças de amores e corações partidos, casamentos que foram planejados e nunca aconteceram, até que o último ônibus parte e dá adeus à adolescência.

O vocalista declarou que essa canção é “sobre os perigos de se ficar preso na rotina de trabalho de 9 às 17h e depois ir para o pub beber e falar sobre todas as coisas que sonharia em fazer, mas que, na realidade, nunca se concretizarão. Torch regressa aos lugares que costumava frequentar e vê como ele era antigamente. Isso o assusta, especialmente os bêbados desenhando círculos com seus dedos em torno de seus copos. Alcoólatras sempre fazem isso”.

A letra diz:

“Era um anel de casamento

Destinado a ser encontrado em um hotel barato

Perdido na pia da cozinha

Ou jogado em um poço dos desejos”

Essa é uma das melhores faixas do álbum, sendo uma das favoritas dos fãs. Até hoje é executada ao vivo em shows da banda.

Steve Rothery faz um trabalho delicado e belíssimo com seus dedilhados e arpejos na guitarra, com solos maravilhosos, sempre acompanhado pelo teclado sutil e por vezes dramático de Mark Kelly. Sem dúvida, músicos de alta categoria.

O autor com o guitarrista Steve Rothery


That Time of the Night

“Quando estávamos fazendo aquele álbum eu simplesmente me sentia alienado. No estúdio eu era deixado sozinho para gravar meus vocais. Você quer minha carta de renúncia? Está naquele álbum. Leia a letra de “That Time of the Night”. Ela relata exatamente como eu estava me sentindo na época. É uma canção sobre paranoia. Torch está tentando se livrar de todos os seus vícios e se sentindo paranóico e desesperado para tentar conseguir se aproximar de alguém”, declarou Fish.

Torch está deitado na cama. As luzes da rua traçam cruzes nas paredes de seu quarto. Se alguém o pergunta como ele se sente, ele diz que falaria honestamente que vem viajando incessantemente e que, se seus donos lhe dessem algum tempo livre, provavelmente ele fugiria.

A letra da canção diz:

“Se eu tivesse dinheiro suficiente, pagaria uma rodada para aquele menino ali.

Meu companheiro em minha loucura, no espelho, aquele com o cabelo grisalho

Se alguma alma caridosa puder pagar a minha conta

Enquanto o fazem, poderiam também catar os cacos do meu coração partido”.

Poesia pura, complementada de maneira magistral pela cozinha impecável de Mosley e Trewavas.

Pete Trewavas


 

Going Under

Essa é uma faixa peculiar em vários aspectos. É a mais curta do álbum, não tem participação do baterista Ian Mosley, além de ser a mais triste e, provavelmente, a mais bela da coleção.

Aqui Torch chegou ao fundo do poço. Ele não tem mais nada a dizer nem desculpas para dar. Acha que está enlouquecendo e afundando em seus hábitos e vícios dos quais não consegue se livrar.

Fish interpreta de forma muito emotiva a letra acompanhado por um lindo e marcante arpejo criado pelo genial guitarrista Steve Rothery e um fundo climático criado, de muito bom gosto, pelo tecladista Mark Kelly. Realmente a beleza dessa canção é muito tocante.

Mark Kelly


 

Just For the Record

Provavelmente a faixa menos especial do álbum. É uma das poucas que nunca foi executada ao vivo pelo Marillion. Apenas para constar, Torch diz a todos que quiserem ouvi-lo que ele tem total controle sobre seu envolvimento com o álcool e que consegue parar na hora que quiser, uma velha mentira que todo alcóolatra conta para os outros e para si mesmo.

Essa é uma canção mais alegre, pois o protagonista está no bar com seus amigos bebendo animadamente, dizendo que poderá largar a bebida amanhã, não hoje, pois ele não precisa fazer isso. Na realidade ele nunca irá parar de beber.

No entanto, Torch admite que não tem disciplina nem autocontrole. Sua desculpa para beber é que o álcool lhe traz inspiração. Por fim, afirma que é apenas uma fase passageira.

Musicalmente a faixa nos remete muito às canções do Genesis nos anos 70, na fase em que Peter Gabriel fazia parte da banda. Os teclado de Mark Kelly aqui tem uma forte influência de Tony Banks, tecladista do Genesis.

 

White Russian

Tematicamente e musicalmente a faixa mais pesada do álbum. É a canção mais política de todas. Aqui Torch está observando com muita preocupação o surgimento do movimento Neonazista na Áustria.  Ele se dá conta de que precisa fazer algo e encarar a realidade. Ele se sente dividido entre seu lado realista e o escapista. Torch está muito perturbado com o que vê e não consegue mais dormir à noite. Ele não é capaz de fingir que está tudo bem ao ver as sinagogas serem queimadas. Segundo ele, há seis milhões de razões para ele se levantar e lutar, aproximadamente o mesmo número de judeus mortos durante a Segunda Guerra Mundial.

Torch está chocado como o mundo ocidental esqueceu tão rapidamente seus votos e promessas de não permitir que o nazismo ressurgisse. Você pode fechar os olhos, tentando esconder o que vê, mas tudo voltará no dia seguinte.

Essa canção foi escrita na época que Kurt Waldheim foi eleito presidente da Áustria, apesar de haver um amplo reconhecimento por parte da sociedade austríaca que, provavelmente, ele havia cometido crimes durante a Segunda Guerra Mundial, durante o governo nazista. Sua eleição coincidiu com um aumento na atividade neonazista em toda a Europa que, infelizmente, permanece até hoje.



Em vários momentos da canção Torch se pergunta “Para onde iremos daqui em diante?” Seria realmente Torch se perguntando sobre o futuro destino da Europa ou seria o próprio Fish se perguntando qual seria o seu futuro no Marillion? Provavelmente ambos.

O título da canção é também o nome de um cocktail à base de vodca, licor de café e creme

 

Incommunicado

Depois de toda a tristeza e angústia refletidas na canção anterior, temos a canção mais “animada” do álbum. O título da canção é uma gíria para “bêbado”.

Aqui, Torch quer realmente ser reconhecido, com todos os benefícios que a fama traz, mas sem ter de assumir as responsabilidades inerentes ao fato de ser famoso.

Podemos notar que há uma grande influência da banda The Who aqui. Fish sempre declarou ser um fã da banda e queria fazer algo inspirado neles. Os outros integrantes não se entusiasmaram muito pela ideia. No entanto, parece que aqui a vontade de Fish prevaleceu.

A banda toca de forma energética e contagiante nesse que foi o primeiro single do álbum. Ao vivo, sempre foi uma canção que levantou a plateia, fazendo com que todos cantassem junto e batessem palmas. Realmente um dos pontos altos do álbum.

Na letra, Fish mostra o cinismo de Torch, que adoraria encontrar pessoas desde que ele conseguisse se lembrar do nome delas pois, desde que alcançou a fama, tem tido problemas com a memória.

Alguns dos melhores versos de sua carreira estão aqui, nessa canção. Torch afirma ser alérgico à água mineral Perrier, à luz do sol e à responsabilidade. Ele quer fazer anúncios para o cartão American Express, talk shows na TV, ter uma mansão na França e seu próprio bar, onde ele poderá ser encontrado.



Os delírios com a fama parecem tomado conta da mente de Torch. Ele quer alcançá-la a qualquer custo, mesmo para isso tenha que renunciar a sua sanidade física e mental.

Mark Kelly faz um ótimo solo de teclado que conduz magistralmente a banda ao refrão da canção. Além disso, Pete Trewavas e Ian Mosley mostram todo seu virtuosismo levando a canção em um ritmo contagiante.

 

Torch Song

Essa é uma canção fortemente influenciada pelos escritos de Jack Kerouac, o líder do movimento beatnik no final dos anos 50. Kerouac foi o autor do lendário livro “On The Road”, que foi considerada a bíblia do movimento.

Torch aqui mostra todo seu perfil de poeta romântico, alcoólatra e autodestrutivo, que busca ter todas as experiências possíveis no mundo antes de alcançar uma morte prematura. No início da canção podemos ouvir Torch sacando a rolha de uma garrafa e servindo a bebida em seu copo.

Um dos melhores momentos é a “consulta” que Torch faz na canção com o seu médico, Dr Finlay. O conselho que recebe de seu médico é o de que se ele mantiver o estilo de vida atual não chegará aos 30 anos. O detalhe é que o personagem Torch tinha 29 anos na época, exatamente a mesma idade de Fish ao escrever as letras do álbum. Coincidência? Claro que não.

Torch admite que está tarde demais no jogo para demonstrar qualquer orgulho ou vergonha. Ele se considera um caso perdido. Mais uma letra sensacional, acompanhada da guitarra extraordinária de Steve Rothery. Um dos pontos altos da canção é quando Torch acende um fósforo e Rothery simula um grito com sua guitarra. Brilhante.


O autor com o baixista Pete Trewavas


Slainte Mhath

Essa canção tem seu título escrito em celta, pois terra natal do vocalista Fish é a Escócia, tendo sido ele nascido em Edimburgo. A pronúncia da expressão é “Slanj navá”, que quer dizer “saúde”, dita sempre quando se faz um brinde a alguém.

É uma canção com forte influência escocesa, sobre sonhos partidos e amigos se encontrando no pub e fazendo brindes, dizendo “slainte mhath”!

Fish contou que escreveu essa canção dentro de um pub, quando estava bebendo e lendo um livro quando um bêbado chegou até ele e lhe perguntou se ele era um escritor e, antes que recebesse uma resposta, passou a lhe relatar toda a história de sua vida, culpando o destino por todos os seus fracassos e desilusões. Após ouvir atentamente tal relato, a única coisa que o vocalista conseguiu dizer foi “slainte mhath” e fez um brinde com seu recém conhecido companheiro de pub.

Fish faz um paralelo entre seus ancestrais, que lutaram na Primeira Guerra Mundial e foram massacrados na linha de fogo inimigo com seus compatriotas que viviam a situação de desemprego devido ao fechamento das minas de carvão e fábricas na Escócia. Ambas gerações estariam na “linha de fogo inimigo”, uma literalmente e a outra economicamente e financeiramente.

Fish


Uma das mais imponentes e poderosas canções do álbum, foi a escolhida para abrir todos os shows da tour promocional do álbum “Clutching at Straws”. Mark Kelly tem uma participação decisiva na faixa, pois seu piano e teclados conduzem toda a melodia da canção até que Steve Rothery entre com sua guitarra inconfundível tocando um belo arpejo com o efeito de digital delay, que leva a canção juntamente com os teclados. Musicalmente excelente, com uma letra incrível. Mais uma faixa sensacional nesse álbum repleto de grandes momentos musicais e poéticos.

 

Sugar Mice

Uma das mais belas canções de toda a carreira do Marillion, além de ser uma das favoritas dos fãs, executada até hoje pela banda e por Fish em seus respectivos shows. Foi o segundo single lançado do álbum.

Sobre a canção, Fish declarou: “Eu estava deitado na cama do hotel Holiday Inn olhando para o teto e vendo corações que alguns namorados haviam talhado no teto. Eu estava me sentindo realmente deprimido. Então eu liguei para a minha namorada, mas foi uma conversa ruim, vários silêncios longos. Eu fiquei ainda mais triste. Torch decidiu fugir de tudo e todos e foi buscar um sonho que não existe.”

“Eu adoro a letra dessa canção. Eu a escrevi em Milwaukee quando estávamos em tour pelos EUA. Eu fiquei hospedado em um hotel muito ruim, imaginando como seria se alguém tivesse deixado sua esposa e filhos na Escócia ou em algum outro lugar, e tivesse atravessado metade do mundo para ficar hospedado em um hotel horrível com um bar incrivelmente triste no térreo. Nós chegamos no domingo e tudo o que eu podia ver pela janela eram os vendedores de droga na esquina. A canção é sobre isso.”

Torch não tem mais ninguém para culpar, a não ser a si mesmo. Desta forma, assume a culpa de todos os problemas com os quais se envolveu.

Sem dúvida, uma das melhores letras de toda a carreira do grande poeta. Aqui, várias estrofes são realmente magníficas. A inspiração veio forte nesse domingo de solidão no hotel. Alguns exemplos:

“Eu ouvi Sinatra me chamando pelo piso de madeira

Onde você paga com uma moeda para uma parceria em rima

Para a jukebox chorando no canto

Enquanto a garçonete está contando o tempo”

Mais uma estrofe:

“Bem, a coisa mais difícil que eu já fiz foi falar com as crianças ao telefone

Quando eu as ouvi fazendo perguntas eu soube que vocês estavam totalmente sozinhos

Será que você não pode entender que o governo me deixou sem emprego

Eu simplesmente não pude suportar o olhar deles dizendo: “Que idiota”

Então se você quer meu endereço é o número 1 no fundo do bar

Onde eu me sento com os anjos com asas partidas, agarrando as palhas e cuidando das cicatrizes

Ponha a culpa em mim, ponha a culpa em mim.”

Se não bastasse a letra maravilhosa da canção, Steve Rothery ainda faz um solo de guitarra simplesmente antológico, talvez o melhor de toda a sua carreira. O solo é tão lindo que podemos até mesmo cantá-lo, pois faz parte integral da faixa. Um momento de arrepiar o ouvinte com tanta emoção. Sensacional.

Steve Rothery


 

The Last Straw

Na faixa final do álbum Torch volta a escrever compulsivamente em sua máquina de escrever (lembrem-se que estamos em 1987), colocando no papel todos os seus pesadelos e lembranças, tentando limpar a sua consciência e abrir a mente para ter novos sonhos

Faz uma crítica ao isolamento em que vivemos, cada um fechado em seu pequeno mundo, nos enganando achando que há alguém que se realmente se importa conosco e irá atender nossas orações. Chega ao ponto de dizer que todos nós somos pacientes terminais que, ainda assim, continuamos tomando nossas medicações, fingindo que o fim não está próximo.

“Nós fazemos gestos fúteis, posamos para as câmeras

Com nosso rosto maquiado e sorrisos de relações públicas

E quando o anjo desce para nos buscar

Nós descobriremos que, no final das contas, nós somos apenas homens de palha

Mas tudo continua igual

Passando o tempo, jogando a culpa

Nós seguimos em frente da mesma maneira

Nós descobriremos um dia que deixamos para tarde demais o que queríamos ter dito”

Torch não quer que ninguém se solidarize com ele. Na realidade, se nós olharmos para ele, no reflexo de seus olhos reconheceremos então que nós todos somos um só e somos iguais. Há um pouco de Torch em cada um de nós. Todos estamos tentando nos agarrar em algo para nos salvar.

Musicalmente é uma canção forte, mais pesada, cantada com agressividade e com uma instrumentação idem. O destaque aqui vai para a bateria de Ian Mosley.

O título da canção é “The Last Straw / Happy Ending”, pois a gravadora insistiu muito com a banda que o álbum tivesse um final feliz. Apenas para se vingarem tal atitude patética, exercendo uma pressão sobre a obra que estava sendo criada, a banda decidiu adicionar “Final Feliz” no título. Na realidade, após o término da faixa só ouvimos Fish dizer “No!” e dar uma gargalhada pois, na realidade, não há nenhum final feliz.  

 

O LEGADO DE “CLUTCHING AT STRAWS”

“Clutching at Straws” é o álbum mais maduro e completo da banda, no qual conseguiram estabelecer um equilíbrio entre a introspeção e a grandiosidade do sucesso. Um álbum estranhamente romântico, embora tenha toda uma atmosfera sombria, triste e um pouco depressiva. É um daqueles álbuns que merecem ser ouvidos atentamente, em silêncio, a sós, de preferência acompanhado apenas de uma bebida e deixar que a banda o leve nessa incrível viagem que, provavelmente, você ficará tentado a repetir.

Considero que o ponto alto dessa obra sejam as letras, ou poemas, escritos por Fish. São simplesmente geniais, nas quais ele faz pinturas detalhadas em nossas mentes ao nos contar a história de Torch. Além disso, a parte musical é também toda brilhante, com um destaque especial para a atuação do guitarrista Steve Rothery que toca com todo o seu coração, criando solos lindos e linhas melódicas que também são altamente poéticas. Uma combinação única.

A tour promocional do álbum foi a mais bem sucedida de toda a carreira da banda até então. Se apresentaram para plateias cada vez maiores, chegando ao maior show da carreira deles em Berlim, onde tocaram para 95.000 pessoas.

Ao vivo em 1987


No entanto, nos bastidores a atmosfera não refletia tal entusiasmo. A banda apelidou a tour de “Tour dos Infernos”, por ter sido a mais infeliz que fizeram. Na realidade, os músicos estavam cada vez mais distantes entre si, particularmente de Fish, que passava praticamente o tempo todo isolado dos outros, que não queriam ter nenhum tipo de contato com ele.

Steve Rothery declarou que “parecia que a coisa que Fish mais amava fazer agora ele havia passado a odiar. Ele estava procurando pessoas para culpar”.

Fish afirmou “Nós não estávamos nos dando bem e, quando saímos para a tour se tornou intolerável. O ônibus da tour não era um lugar bom de se estar. Cada um de nós se sentava em uma posição diferente, ninguém falava nada. O espírito de grupo havia sido perdido.”

Fish nos dias de hoje


Pete Trewavas disse “Nós vivíamos em uma bolha. Não podíamos ir a lugar nenhum sem segurança, tínhamos que usar pseudônimos nos hotéis, não podíamos sair sozinhos.”

Mark Kelly sentia que “Eu ia para o palco a cada noite achando que eu estava tocando sozinho”.

Ian Mosley disse que “Após nossa maior apresentação em Berlim nós descemos do palco e a banda estava dizendo que não havia curtido o show. Foi aí que o alarme soou para mim. Se você não aprecia tocar para uma plateia assim é sinal de que há algo muito errado.”

O problema poderia ter sido muito amenizado se eles tivessem podido tirar umas férias das tours incessantes e uns dos outros. Mas o empresário deles estava determinado a mantê-los na estrada, em detrimento da própria banda. Mark Kelly afirmou que eles precisavam de seis meses de descanso. Se isso tivesse acontecido, provavelmente Fish não teria saído da banda e eles não teriam se separado.

Ao final da tour, as coisas começaram a piorar ainda mais. Havia uma relutância em trabalharem juntos novamente. Foi feita uma última tentativa de trabalharem em um novo álbum, mas ela foi fracassada. A banda não queria mais ficar junta, na mesma rotina de sempre. Ficou nítido que havia um distanciamento entre o que o vocalista e o restante da banda queria, cada parte querendo seguir em uma direção diferente. Algum material chegou a ser produzido e gravado, sendo reaproveitado posteriormente nos dois primeiros álbuns solo de Fish e do Marillion com o sucessor do grande escocês, o novo vocalista Steve Hogarth.

O autor com Steve Hogarth


Fish escreveu uma longa carta para a banda listando os pontos que deveriam ser mudados para que ele pudesse permanecer na banda. A banda não concordou e disse que aceitava a renúncia dele como vocalista da banda. Uma fase muito importante do Marillion havia se encerrado.

Os membros da banda ficaram sem ter contato com Fish durante mais de uma década. Depois desse período, se reaproximaram gradativamente e foram recuperando sua amizade. Isso pôde ser comprovado quando todos os músicos fizeram uma participação especial na última música de um show de Fish em Aylesbury, cidade onde o Marillion foi formado. Depois disso, o próprio Fish se encontrou em várias ocasiões com o seu sucessor, Steve Hogarth, afirmando que eles tem um bom relacionamento. Mais recentemente, os cinco membros da formação clássica da banda se reuniram em um pub para gravarem entrevistas sobre os quatro álbuns que gravaram juntos, tudo em um clima de alegria e descontração.

Steve Hogarth e Fish


Embora o álbum tenha um final triste, ao menos na vida real os cinco músicos conseguiram resgatar a amizade que os levou inicialmente a formar o Marillion.

Finais felizes também acontecem.

 

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BIBLIOGRAFIA

Marillion – Separated Out – por Jon Collins

The Inside Story Behind Marillion’s Clutching at Straws – Prog Magazine, por Dave Everley

Shadow play – por Mark Wilkinson

Masque - The Graphic World of Mark Wilkinson, Fish and Marillion, por Mark Wilkinson e Fish

Marillion – Explanation of Song Elements - http://marillionations.blogspot.com/

 

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