VILA
OPERÁRIA MARIA ZÉLIA
Antiga farmácia - Atual sede do grupo XIX de teatro
Se
pudéssemos escolher um local que representasse, em uma escala mínima, toda a
riqueza histórica e cultural de nosso país, além da beleza de nosso patrimônio arquitetônico,
mas que, por outro lado, evidenciasse o total descaso e abandono através dos
quais tais elementos são vistos pelos nossos governos e sociedade, esse lugar
poderia ser facilmente exemplificado pela Vila Operária Maria Zélia.
Para
podermos entender a importância e o valor histórico do local é preciso
voltarmos no tempo. Precisamente ao ano de 1912.
Fachada da Escola de Meninos |
No
início do século XX, o continente europeu presenciou o surgimento de inúmeras
vilas operárias, criadas com o intuito de servir de residência para os
operários que trabalhavam nas fábricas em países como Inglaterra, França,
Bélgica e outros. Tais vilas eram quase que mini-cidades, com vários tipos de
serviços disponíveis para os operários em que nelas residissem. Além disso,
apresentavam condições de saneamento urbano muito superiores à maioria das
residências comuns da época.
Em
São Paulo, as vilas operárias acabariam se instalando em bairros como Mooca,
Ipiranga, Bom Retiro e Brás, próximas às linhas ferroviárias e às indústrias de
famílias como Matarazzo, Penteado e Crespi. A maior parte destas indústrias permaneceu
em atividade até a década de 1980. No entanto, a primeira vila operária do
Brasil foi criada no Belenzinho.
Fachada da Escola de Meninas |
Foi
justamente tendo todo esse cenário em mente que o médico e empresário carioca
Jorge Street, que havia herdado as ações da Tecelagem de Juta São João em 1896
e fundado a Companhia Nacional de Tecidos de Juta em 1904, adquiriu o terreno
para a construção de uma vila operária, ao lado da filial de sua fábrica no
Belenzinho.
A
fábrica de Jorge Street produzia sacarias para produtos agrícolas e empregava aproximadamente
2100 operários. O empresário tinha uma relação muito próxima com seus
funcionários, pois acreditava muito no conceito de “justiça social”. Tinha por
hábito visitar os operários em suas casas e estabelecer laços fortes com eles.
Durante tais visitas, se deu conta das condições precárias em que a maior parte
deles vivia. Tal constatação o levou a buscar uma solução para tal problema
Inspirado
no modelo europeu, decidiu contratar um arquiteto de origem francesa, chamado
Paul Pedraurrieux, para construir uma vila operária para os funcionários de sua
fábrica e seus familiares. Street se envolveu pessoalmente com a execução de
todos os projetos do terreno adquirido por ele.
Observador solitário |
O
projeto de Street previa a construção de 220 casas familiares, além de um
dormitório para solteiros, uma escola para meninos e outra para meninas, uma
creche, dois armazéns, um ambulatório, consultórios médicos e odontológicos,
uma igreja, um salão de eventos, um açougue, um campo de futebol, um coreto,
uma praça, uma farmácia, além de uma fábrica de sapatos. Além de possuir ótimas
condições estruturais, os moradores da Vila também dispunham de serviços
incomuns na época, tais como a cobrança de aluguel descontado diretamente dos
salários, uma taxa de cobrança pelo uso de água e o acesso aos serviços do
armazém, que vendia produtos com subsídios de 50%.
O
critério utilizado para a separação de famílias entre os diversos tipos de
habitação era o número de membros. Quanto maior fosse a família, maior a
moradia. Os administradores da empresa também tinham direito à residências
maiores. Havia casas de quatro tamanhos, variando entre 75 a 110 m2, além de
seis tipos diferentes. Todas elas dispunham de água e esgoto encanados, o que
podia ser considerado um luxo para a época, na qual grande parte dos
trabalhadores morava em cortiços.
Casa em estilo arquitetônico original |
Uma
das grandes preocupações de Jorge Street era com as crianças. Por tal motivo é
que ele estabeleceu que a educação na Vila Maria Zélia seria uma prioridade e
seria gratuita para os moradores. Para atender à demanda dos filhos dos
funcionários foram construídas três escolas: uma para meninos, outra para
meninas e uma terceira que servia de creche e jardim de infância. Tais escolas
eram consideradas como as melhores da região e também eram abertas aos moradores
das ruas vizinhas da vila.
Dentro
da creche as crianças recebiam roupas, alimentos, tomavam banho e recebiam o
leite para beberem à noite em casa. Até os sete anos de idade, os tratamentos
médicos e odontológicos eram gratuitos. Ao atingirem tal idade, elas passavam a
estudar na escola e tinham aula com professores da rede oficial de ensino.
Havia dois períodos de aulas: diurno e noturno. O período noturno era destinado
às crianças que trabalhavam na fábrica de Street.
As
crianças recebiam também medicamentos gratuitos, enquanto os adultos tinham o
valor dos mesmos deduzidos de seus salários. Também eram promovidas festas,
bailes, concertos musicais e jogos de futebol.
A
vila operária começou a ser construída em 1912 e foi inaugurada em 1917. O
arquiteto Paul Pedraurrieux conseguiu criar uma pequena vila europeia dentro do
Belenzinho. A nova vila recebeu o nome de Maria Zélia em homenagem à filha de
Jorge Street, que havia morrido de tuberculose dois anos antes da inauguração
do empreendimento.
A
inauguração da Vila Maria Zélia foi um grande acontecimento na cidade de São
Paulo, contando com a presença de políticos, industriais e do então Cardeal
Arcebispo de São Paulo, Dom Duarte Leopoldo e Silva, que foi o responsável pela
missa inaugural. Na ocasião ele visitou e abençoou todas as partes da Vila, tendo
sido seguido por uma grande multidão.
Antigo Colégio Manoel |
Embora
Jorge Street tenha obtido sucesso com sua fábrica, ele acabou acumulando
dívidas e teve que vender o complexo em 1924, que foi adquirido pela família
Scarpa que, por sua vez, o revendeu à família Guinle. Como os Guinle também
tinham muitas dívidas com o governo federal, a fábrica e a vila acabaram sendo
confiscadas pelo Instituto de Aposentadorias e Pensões do Industriários.
Um
outro período marcante da Vila Maria Zélia se iniciou em 1935 e durou até 1937,
quando Getúlio Vargas a transformou em presídio político durante o período do
Estado Novo. Tal uso da vila se deu após a chamada “Intentona Comunista”.
Chegaram a ser detidos 700 presos no local, a maior parte deles ligados ao
Partido Comunista Brasileiro e também intelectuais que se opunham ao governo
ditatorial de Vargas. Entre eles, foram detidos personagens ilustres, como o
historiador Caio Prado Jr. Como grande parte dos presos políticos era composta
de intelectuais, historiadores e acadêmicos, a vila passou a ser chamada de
“Universidade Maria Zélia”.
Antigo Colégio de Meninos |
Em
1939, dois anos após o presídio ter sido desativado, a fábrica foi reaberta
pela Goodyear, que demoliu a fábrica de tecidos, a creche, o jardim de infância
e 18 casas para que a fábrica pudesse ser ampliada. Os moradores da vila
passaram a pagar aluguéis pelo uso dos imóveis e, em 1968, tiveram a
oportunidade de comprá-los através do sistema do Banco Nacional de Habitação. A
inauguração da fábrica Goodyear acabou de vez com o vínculo entre a vila e a
fábrica, pois foi criado um muro que, até os dias de hoje, separa as duas
partes.
A
Vila Maria Zélia já teve vários moradores ilustres. Entre eles, aquele que tem
seu nome mais ligado ao local é o comediante Mazzaropi, que registrou seu filme
“O Corintiano”, de 1966, em uma casa ainda existente até hoje na Vila. Outros
moradores famosos foram a jornalista Patrícia Galvão, conhecida como Pagu, além
de Octávio Frias de Oliveira, fundador da Folha de São Paulo.
Casa na qual foi filmado o filme de Mazzaroppi |
Todo
o conjunto arquitetônico foi tombado em 1992. Das 220 casas originais, ainda
restam 171. No entanto, a maior parte delas já teve suas fachadas e outras
características originais alteradas por obras irregulares ou não autorizadas,
embora ainda remetam à arquitetura original. Os prédios funcionais (escolas e
armazéns), pertencem até hoje ao INSS, que tenta vendê-los a órgãos públicos
por alegar não ter recursos para a restauração dos mesmos, se encontrando em
total estado de abandono, completamente largados, sem qualquer manutenção ou
cuidado. Existe até mesmo o risco destes imóveis desmoronarem, devido ao precário
estado em que se encontram. A Igreja São José está em condições um pouco
melhores, pois é administrada pela Paróquia de São José do Belém, que conseguiu
fazer uma reforma no telhado da igreja e evitar que o mesmo desabasse.
Igreja São José |
A
escola das meninas já foi cenário de vários ensaios fotográficos, campanhas
publicitárias e clipes musicais, pois como muitas árvores cresceram dentro do
prédio, tal ocorrência inusitada acabou criando um cenário único e muito
original, bastante apreciado por artistas e publicitários.
Antigo Colégio de Meninas |
Dois
dos imóveis pertencentes ao INSS são usados atualmente pela Companhia Teatral Grupo
XIX, que apresenta suas peças no local e tem contribuído para atrair a atenção
para preservação do patrimônio histórico e arquitetônico da Vila; e também pela
Associação Cultural Maria Zélia, que organizou um Centro de Memória da Vila e
também é responsável pela organização de festas juninas e do aniversário da
vila, com o objetivo de angariar fundos para as restaurações necessárias.
Em
todas as vezes que visitei a Vila Maria Zélia, fiquei impressionado pela
originalidade do local e por sua beleza, ainda que esteja tão mal preservado.
Seria muito importante que a sociedade e os governos municipais e estaduais se
unissem para restaurar e valorizar um local tão importante para a história de
São Paulo e do Brasil.
Se
tiver a oportunidade de conhecê-la pessoalmente, não deixe de fazê-lo, pois
terá a chance de presenciar uma parte pouco conhecida de nossa história que, se
não for urgentemente restaurada, poderá desaparecer para sempre.
Para
maiores informações, consulte o site oficial da Vila Operária Maria Zélia.
https://www.vilamariazelia.com.br/
Marco André Briones – pensarnaoeproibidoainda@gmail.com
Todas as fotos da
matéria foram tiradas por Marco André Briones, em julho de 2017.
Bibliografia:
Vila
Maria Zélia – Visões de uma vila operária em São Paulo, de Vanderlice de Souza
Morangueira – USP (2006)
Wikipédia
Aos
100 anos, o tempo parou na Vila Maria Zélia, de Priscila Mengue – O Estado de
São Paulo – 12 de maio de 2017.
Vila
Maria Zélia, nostalgia e descaso na memória da cidade, de Marina Izidoro –
Sampa Inesgotável
Vila
Maria Zélia – São Paulo Antiga – saopauloantiga.com.br